Beleza e feiura são conceitos que se opõem mesmo pela semântica por serem antônimos, ou seja, palavras de significados contrários. Fora dos livros de Língua Portuguesa, entretanto, é onde encontram-se os maiores exemplos práticos da forte rivalidade que existe entre os termos e o que eles significam. Com base na cinematografia e na literatura, comentemos sobre como essa dualidade tem sido manifestada na mídia, passando por Clarice Lispector, musa da terceira fase do modernismo brasileiro, para pousarmos em Sierra Burgess, obra contemporânea do audiovisual teen.
Felicidade Clandestina
Felicidade Clandestina é um conto de Clarice Lispector que integra um livro homônimo, publicado em 1971. Da segunda fase do modernismo, o livro de 25 contos aborda assuntos como as angústias da alma, família, adolescência e infância, sendo o último o tema principal deste que dá nome a obra, acompanhado ainda da presença da mulher, da personagem feminina, uma das grandes marcas da autora.
O conto Felicidade Clandestina tem duas personagens principais: uma menina egoísta, má, descrita como gorda, baixa, sardenta e filha do dono de uma livraria, e a sua colega da mesma idade descrita como e bonitinha, esguia, altinha, de cabelos livres que era uma leitora ávida, porém que sempre teve seus pedidos de livros emprestados negados pela outra.
A protagonista entra como uma anti-heroína por sua maldade em relação a colega quando, após tantos pedidos, resolve fazer uma brincadeira de mau gosto, afirmando-lhe falsamente que lhe emprestará um exemplar de Reinações de Narizinho no dia seguinte, bastando apenas ir até sua casa para pedi-lo, mas sempre fazendo a menina voltar, dia após dia, de mãos abanando e com uma desculpa diferente, até sua mãe descobrir e reverter a situação.
A personagem principal, má, por suas características e ambições, pode ser considerada uma personagem redonda, profunda, por quebrar com as expectativas que podem surgir em relação a sua personalidade ao longo da leitura, principalmente quando, hoje, estamos com uma imagem estereotipada consagrada de “menina má” na cabeça, com assinatura de Hollywood.
O estereótipo da garota má no cinema
Adolescentes egoístas, egocêntricas, belas, ricas, sempre vestidas de rosa e primordialmente loiras: este é o estereótipo da “patricinha” consagrado pelo cinema ao longo dos anos. As meninas que (quase) sempre ocupam papéis de vilãs, mesmo quando são as protagonistas da própria história, tiveram um caminho até alcançarem a forma como a conhecemos:
Grease (1978) aparece como um dos fundadores do estereótipo com a presença das Pink Ladies, lideradas por Betty Rizzo (Stockard Channing), como personagens secundárias do romance entre Sandy (Olivia Newton-John) e Danny (John Travolta). Pouco mais tarde, em 1985, era lançado O Clube dos Cinco, que viria a perpetuar estereótipos não só das garotas malvadas vestidas de rosa, mas de outras classes como os emos, nerds, atletas e bad boys, que circundam o mesmo universo colegial/adolescente.
O auge dos filmes de patricinhas foi entre o fim dos anos 90 e início dos anos 2000, quando finalmente surgem os filmes protagonizados por estas garotas e seus cotidianos consideravelmente fúteis. Observa-se As Patricinhas de Beverly Hills (1995) e Meninas Malvadas (2004) como as principais produções na temática. Embora protagonistas, vivem um “anti-heroísmo” por suas atitudes rudes e/ou vulgares, extensão de sua personalidade, mas nem por isso deixaram de servir como modelo para as espectadoras.
A tendência diminuiu, mas a temática não caiu no esquecimento por completo. Hoje, ainda há narrativas sendo construídas com esta personalidade base, como o seriado Scream Queens (2015-2016) e, de certo modo, até mesmo Insatiable (2018), mas o formato Lispectoriano de antagonista já começa a ser utilizado em produções para o grande público.
Sierra Burgess é uma Loser
Neste recente filme teen lançado pela Netflix, apresenta-se uma protagonista fora dos padrões hollywoodianos de garota má, podendo ser mais comparada com a personagem de Lispector: gorda, é considerada feia não só por seus colegas, mas por si mesma.
O filme começa bem, com uma personagem que tinha tudo para ser um exemplo de empoderamento, pois focava muito mais em seus estudos e objetivos pessoais do que em sua aparência, acreditando que seu intelecto seria o suficiente para ser vitoriosa em sua vida.
O grande erro vem quando passa a utilizar sua desvantagem física como desculpa para agir com crueldade perante pessoas outras pessoas, como seu interesse romântico, Jamey, a quem mente durante todo o longa, fazendo-o acreditar que ela é uma outra pessoa, apenas por medo de mostrar sua verdadeira face, e sua amiga Veronica, linda, “padrão”, mas que mesmo com todas as diferenças se submete a ajuda-la e torna-se parte dessa mentira para, no fim do filme, ser vítima de um ataque humilhante pois, como dito anteriormente, a garota bonita é sempre vista como a vilã, e Sierra tem isso em sua mente.
Mesmo após ter sua vida destruída ou ter se apaixonado por uma imagem falsa e abusiva, ambos Veronica e Jamey decidem perdoar Sierra por seus atos baseados em baixa autoestima, por um altruísmo extremamente cinematográfico, enquanto a garota sai ilesa por todas as suas duras ações e, ainda, encerra o filme vitoriosa ao lado de seu amado e nova melhor amiga.
Um ótimo filme, sim, com uma bela mensagem sobre amizade e perdão, mas ainda com um enredo problemático que precisa ser discutido: se considerar inferior a alguém ou a algum grupo não é motivo para tratar os demais com desrespeito e crueldade. A beleza física pode abrir muitas portas, mas a chave para o respeito está sempre no interior de cada um.
Quando as obras dialogam
Em Felicidade Clandestina (1971), escrito e publicado antes de qualquer um dos filmes supracitados, Clarice aborda uma vilã com profundidade e livre destas características contemporâneas. Uma leitura atual, em um período no qual estes estereótipos da “menina má” já estão consagrados entre leitores e espectadores, torna o texto ainda mais instigante: colocar a garota feia e gorda como vítima era o que se esperava, e a quebra de expectativa surpreende positivamente.
As personagens de ambas narrativas conversam entre si não só por seu contexto físico, exterior, mas também pelo social: assim como a má de Felicidade Clandestina, Sierra vive em classe média-alta, com pais importantes que se preocupam consigo e é, ainda, extremamente inteligente, a ponto de conseguir uma vaga na universidade que almejava. A única coisa que lhe falta é a aparência. Já Verônica, como a menina maltratada no conto, só tem a aparência: sua família é pobre e desestabilizada, numa casa onde falta não só o dinheiro, mas principalmente o amor. Mesmo assim, todos desejam ser ela apenas por sua beleza exterior, sem se preocupar em conhecer o mundo sombrio em que vive quando não está sorrindo pelos corredores do colégio.
Tanto Sierra como a garota má de Clarisse podem, ainda, representar uma externalização da feiura interna. “Deveria olhar o espelho. Sua aparência é a coisa menos feia em você”, frase retirada do filme original Netflix, é a citação que melhor descreve as protagonistas de ambas produções, audiovisual e literária. Deve-se sempre buscar fugir de estereótipos, mas apontar para o extremo oposto pode ainda colaborar para o surgimento de um novo, e este nunca é – ou pelo menos não deveria ser – o objetivo.
Com apoio de Jéssica Sinegali
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