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Anne de Green Gables, um livro a frente de sua época


Anne de Green Gables é o livro mais popular da autora canadense L. M. Montgomery, uma das mais importantes de sua época. A obra foi originalmente publicada em 1908 nos Estados Unidos e é, hoje, mundialmente lida e relida como um dos maiores clássicos da literatura infanto-juvenil norte-americana.

Ambientada Ilha do Príncipe Eduardo, uma das dez províncias do Canadá, a autora revisita a sua própria vida ao descrever, em sua obra, o mesmo espaço no qual passou a sua infância no fim do século XIX. A paisagem bucólica possibilitou a imaginação de Montgomery a voar, assim como a de Anne, personagem título que encanta por seus pensamentos tão a frente de sua época.

A obra é de uma incrível sutileza poética devido, principalmente, a Anne ser uma leitora voraz: seu vocabulário rico e sua ampla gama de referências literárias abrem o leque da personagem, transformando-a em uma mente pensante e criativa, ao contrário das outras garota com quem convive, que ainda estão presas ao comportado estereótipo feminino e dócil.

Em uma sociedade que ainda tinha mulheres apenas como meras donas de casa, que deveriam ser criadas para servir ao marido e nada mais, Anne se permite sonhar e viver, não apenas existir, e é duramente criticada por seu comportamento visto, por muitos, como desleixado. Dentre as demais características da personagem, destacam-se sua língua afiada para responder ofensas pessoais e a vaidade, odiando-se por seus cabelos ruivos e quantidade exagerada de sardas no rosto.


O mesmo tanto que é vaidosa, entretanto, é bondosa. Seu coração é imenso e puro, apaixonando-se por Green Gables e seus moradores antes mesmo de botar os pés no local. Órfã adotada por engano, sentiu imensamente as dores proporcionadas pelo medo de voltar para uma vida de incertezas e, mesmo sem saber, cativou a seus adotantes com sua espontaneidade, permitindo-a ficar.

Neste sentido, o livro aborda, ainda no século passado, as diferentes configurações de família que, hoje em dia, é uma pauta de extrema relevância no mercado editorial e audiovisual. Montgomery capta, mais uma vez, a sensibilidade de um mundo contemporâneo ainda em sua pré-modernidade com o cativante enredo criado pelo abraço que Matthew e Marilla Cuthbert dão a jovem Anne. Abraço, tal, chamado de família.

O principal motivo desta adoção ser tão importante dentro da história da literatura é que, seus adotantes, não são um casal habitual que esteve a espera de um filho, mas de dois irmãos que, com a chegada da idade, sentiram a necessidade de trazer uma criança para ajudá-los com as tarefas da fazenda, mas pouco imaginavam que, na verdade, precisavam mesmo é de uma dose de alegria em suas vidas - dose suprida com folga por Anne, radiante.

Quem a vê sorridente e falante, entretanto, não imagina o quão obscuro foi seu passado: quando criança, a pobre garota passou de lar em lar não como uma criança adotada para fazer parte de uma família feliz, mas para servir de empregada e babá, muitas vezes enfrentando dores físicas e sentimentais pela humilhação de ser constantemente maltratada. Nada disso, entretanto, a impediu de conhecer o perdão e, apesar de respondona, Anne não é de guardar rancores. A não ser por Gilbert Blyte.


Em Gilbert, Anne vê a maior de suas ofensas: ela, uma figura feminista antes mesmo da palavra começar a ser usada, não se deixou cair pela beleza encantadora do rapaz que, para chamar-lhe a atenção, puxou-lhe as tranças - e, em resposta, levou um golpe na cabeça, cena que entrou para a história da literatura. Se dependesse de Anne, nunca mais cruzariam caminhos novamente  ou, pelo menos, era o que ela demonstrava em público.

Os dois possuem uma ligação bastante turbulenta, regada a sentimentos mal compreendidos, culpa, desgosto e competição. É difícil negar que eles são um casal em potencial, mas o desenvolvimento romântico dos dois é, sem dúvidas, inovador, com pequenos gestos e meias palavras que guiam o leitor aos verdadeiros sentimentos de Anne que, embora romântica, não vive pelo amor, e pouco transforma Gilbert em parte inseparável de si, ao contrário da heroína de muitos livros juvenis que passam o enredo todo atreladas a um companheiro com segundas intenções.

O romance romântico não é, nem de longe, o foco dessa obra. Ao contrário, por exemplo, de um romance amistoso, tal como é sua relação com Diana Barry, sua amiga do peito, com quem compartilha laços de um amor verdadeiro desde antes mesmo de sequer conhecê-la pessoalmente, como se pressentisse que a garota seria sua "alma afim", termo que usa para denominar pessoas com quem possui intrínseca e recíproca afinidade.

Diana pode não ser tão criativa ou adiantada como Anne, que parece viver um século a frente de seu tempo, mas gosta verdadeiramente de sua amiga de cabelos alaranjados, delicia-se sinceramente de sua companhia e, principalmente, aprende muito com suas peculiaridades, abrindo-lhe a mente para muito mais do que o mundo inicialmente reservaria para si, sem perder sua essência mais recatada que a da amiga.


No livro, anos se passam e acompanhamos, ainda, Anne deixando sua infância para se transformar em uma adolescente muito sábia e querida, positivamente transformando a vida de todos que com ela se encontrassem. Das primeiras às últimas páginas dos livros, nota-se uma grande mudança na protagonista que perde um pouco de sua leveza infantil, mas nunca sua singularidade: Anne, ontem ou amanhã, é única.

A obra, muito querida na América do Norte, ainda é de pouco reconhecimento no Brasil e no resto do mundo, mas ganho destaque graças a adaptações audiovisuais. O telefilme canadense Anne of Green Gables, de 1985, é um dos mais memoráveis, com Megan Follows e Jonathan Crombie nos papéis principais, mas não se nega que a versão mais popular, internacionalmente falando, é Anne with an E, lançada a nível mundial pela Netflix, que fez muitos completos desconhecidos nesta obra, como eu, se interessarem pela leitura do original e se apaixonarem pela graça de Anne.

No Brasil, o livro foi publicado pela primeira vez em 1939 pela Companhia Editora Nacional, com tradução de Yolanda Vieira Martins. A obra ganhou duas re-edições por aqui: em 2009 pela Martin Fontes, com tradução de Maria do Carmo Zanini e Renée Eve Levié, e em 2015 pela editora Pedrazul, com tradução de Tully Ehlers. Recentemente foi anunciado pela Pedrazul que, até 2020, todos os sete livros da franquia original de Anne devem ser publicados no país.

Independente da versão lida - ou, quem sabe, assistida -, Anne de Green Gables é uma obra profunda, repleta de pormenores muito bem escritos e de personagens cativantes que merecem a sua atenção. A única resposta inválida é deixar de se deliciar com este enredo tão sensível e visionário que torna-se atual e necessário ainda hoje, mais de um século após sua publicação. Boas obras são atemporais, e este livro é a prova mais do que viva disso. 
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